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Mariana Bracks, historiadora da UFS, denuncia série da Netflix por não creditá-la


Capa do livro "Poderosas Rainhas Africanas", de autoria da professora Mariana Bracks Fonseca. Editora ancestre
Capa do livro "Poderosas Rainhas Africanas"

A professora Mariana Bracks Fonseca, do departamento de História da UFS, denuncia a produtora Nutopia, da série “Rainhas Africanas: Nzinga”, por consultá-la sem dar os créditos na série. Mariana foi procurada em julho do ano passado para falar sobre a célebre rainha do Dongo e da Matamba, Nzinga Mbandi.


Professora de História da África e de História da Cultura Afro-brasileira na UFS, Mariana pesquisou a vida de Nzinga durante seu mestrado e doutorado na USP. A professora se dedica em divulgar o legado da monarca do Dongo nos dias atuais. É autora do HQ “Rainha Ginga: guerreira de Angola” e do livro-arte “Poderosas Rainhas Africanas“.


A felicidade em ver a história de Nzinga sendo levada ao mundo pela Netflix foi contraposta pela lástima que é perceber, mais uma vez, que o conhecimento produzido fora das grandes potências ocidentais é usado sem a justa valorização daqueles que produzem. Uma prática recorrente.


O contato se deu por e-mail, através da USP. Marcaram uma consulta via a plataforma Zoom, quando a produtora afirmou que gostaria de envolvê-la na produção da série. A conversa, de cerca de 1h30 min, foi gravada. Nela foram tratadas questões densas da historiografia e que vão além do que se pode encontrar nos artigos científicos, simplificando para a produtora os debates que envolvem o estudo da vida de Nzinga, além de tratar de toda questão geoestratégica e política, presentes na série.


Após a consulta da produtora, via Zoom, a professora entrou em contato via e-mail para saber como a contribuição dela seria creditada na série e receber atualizações do projeto, sendo respondida de forma escorregadia informando que entrariam em contato. Em janeiro, quando do anúncio da série, a professora voltou a enviar e-mails, porém, sem receber retorno.


Somente quando foi ao twitter, reclamando em inglês e marcando a produtora Nutopia, que recebeu uma resposta na qual, além de falar que como a professora havia concedido a consultoria sem negociar os créditos de antemão, a produtora não teria obrigação de creditá-la. E, numa de enorme desrespeito, solicitaram que a professora apagasse o tuíte.


A ação da produtora, de tratar os pesquisadores de fora do eixo de dominação política e econômica como fontes de conhecimento que não merecem qualquer respeito, é um retrato de como a visão colonialista ainda persiste. A professora questiona: “O que custava ter, ao fim dos episódios, colocarem nos créditos os pesquisadores consultados? Colocar lá 20, 30 nomes… Qual dificuldade?”.


A professora da UFS reforça que seu objetivo nunca foi aparecer na série, pois acredita que o caráter afrocentrado da série foi um ponto acertado. Assim como ela, há uma porção de pesquisadores de excelência no Brasil que estudam a história de Nzinga e são lidos pelo mundo todo, mas são tratados como informantes e não como referências, o que ela categoriza como colonialismo epistêmico.


Os quentionamentos sobre as práticas da produtora se estendem ao espaço angolano na série. Abriram mão de gravar as cenas em Angola e optaram por uma cidade cenográfica, desconsiderando que a geografia da região era parte fundamental para as estratégias militares de Nzinga. Deixando de abordar, inclusive, as emocionantes batalhas no rio kwanza.


Apesar de celebrar a existência da série, Mariana lamenta o protocolo antiético com os pesquisadores e com o povo angolano, “dificilmente gravariam uma série sobre os vikings na Bahia”. Pondera também que as falas dos pesquisadores usados na série foram encaixadas com o intuito de fortalecer a narrativa que estava sendo construída, salientando que não necessariamente seria falta de domínio do assunto por parte deles.

Nizinga, National Portrait Gallery London.
Nizinga, National Portrait Gallery London.

A percepção é que a série tinham o objetivo de construir uma Nzinga específica e foram atropelando as evidências científicas apresentadas. Com isso, deixou de lado a busca pelas características que formaram uma heroína real pro povo angolano.


A parte do estudo de Mariana, que trata sobre o envolvimento da rainha com o tráfico negreiro, e toda a importância de se debater o tema para entender melhor a personalidade e as escolhas da personagem histórica, foram tratadas de forma superficial. Nisso, a professora pontua que parte de uma decisão coberta pela liberdade artística da série.


Apesar dessa liberdade artística, a professora pontua que a construção da série se deu num formato que mescla características de documentário e drama, cabendo, portanto, melhor tratar essa personagem complexa e contraditória. Entretanto, a série optou por uma postura anti-histórica que coloca em Nzinga uma discussão abolicionista que só foi existir séculos depois. Nzinga é heroína, mas por conseguir enfrentar e defender seu reino dos ataques das potências europeias.


Mariana ressalta que as ações de Nzinga foram, inegavelmente, dificultadoras do tráfico negreiro europeu. Há documentação de autoridades portuguesas reconhecendo a situação. Era uma briga pela defesa da soberania do reino dela. Ela agia estrategicamente para interceptar os portugueses e rejeitar o pagamento de tributos dos sobas - líderes - da região aos portugueses, por meio de pessoas escravizadas.


“É um contexto do século XVII. Era impossível um chefe africano lutar contra o tráfico de escravos naquele século. O conceito abolicionista surgiu depois. Não tem como imaginar essa mulher, essa luta contra o tráfico. O importante era abordar por que os chefes africanos tiveram que se envolver? Por que não havia outra saída?” afirma a historiadora.


Com base em suas pesquisas, a professora enxerga que a série romantizou a personagem de uma forma anti histórica e desonesta. Evidenciou aspectos emocionais além do que seria esperado e apagou a estrategista que Nzinga era. Outros pontos que fizeram falta para entender a realidade da monarca foram as alianças com os sobas da região, com o rei do Congo e a forma como explorou a relação com o papa.


É fundamental que mais produções tratando dessa temática surjam e recebam os incentivos dos grandes streamings, contudo, respeitando as pessoas que do processo façam parte e a verdade que envolve os temas. Há um filme angolano que trata da temática de forma mais rica,”Njinga, Rainha de Angola”, mas que sequer está disponível nos streamings do Brasil.


O mundo precisa avançar no caminho de pluralizar as perspectivas e formas contidas nas suas produções audiovisuais. Mesmo quando o eixo hegemônico olha para outras culturas, como a brasileira e a angolana, mantém seu viés colonialista. No fim, a felicidade acaba ficando maculada por ver uma pesquisadora da nossa terra tendo seu conhecimento usado sem o respeito que merece e pelo esforço da série em colocar uma heroína real numa caixinha para satisfazer as expectativas de alguns de como ela deveria ser.


 

O HQ “Rainha Ginga: guerreira de Angola”, citado no início da matéria, infelizmente não está inserido na rede de educação do estado de Sergipe. O livro foi concebido através de um recurso de lei de incentivos da prefeitura de Belo Horizonte, mas por estar fora das editoras encontra dificuldades em acessar as redes de ensino. E aqui o portal reforça a necessidade de buscarmos inserir materiais como esse, de qualidade científica, para que os jovens da rede pública tenham acesso.

Ele está disponível nas versões impressa e ebook no site da editora ancestre.

O livro "Poderosas Rainhas Africanas" está disponível no site da editora ancestre e conta com uma página no instagram para sua divulgação.



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